Postado em: 29 de maio, 2019.
Empreender e sobreviver em sociedades modernas é difícil, exige conhecimentos e tecnologias. Como, então, se manter vivos no deserto, um meio em que nossos recursos não servem de nada? A resposta veio da maneira mais improvável. Foi isso que vivi nos anos de 1950, como arqueóloga junto ao meu grupo de pesquisa, perdidos na aridez de um país distante.
Nossa equipe de arqueólogos já estava ali, naquele sítio, há mais de um ano. Era uma tarefa árdua por causa do calor e das dificuldades de trabalho. Tratava-se de uma região inóspita do mundo, cuja boa parte era deserto. O sol escaldante nos maltratava o dia inteiro.
Mas, trabalhávamos motivados pelo que vínhamos encontrando naquelas escavações. Era um material muito rico, que nos contaria mais alguma coisa da história da formação da cultura humana. Sabíamos da importância das descobertas, embora fosse preciso levá-las para análise com tecnologia apropriada.
Havíamos passado alguns anos tentando sermos liberados para escavar ali; foram demoradas e exaustivas as conversas com o Governo do país, para que nos deixasse fazer as escavações. Era um país em constante distúrbios populares há séculos e o Governo exercia seu controle com força militar. Naquela década de 1950 não havia tantas facilidades de comunicação como temos hoje.
Em fuga pelo deserto
Certo dia, nosso trabalho foi subitamente interrompido pela notícia do estouro de uma guerra civil. Éramos estrangeiros e sabíamos que estávamos correndo grande perigo se os rebeldes conseguissem avançar e chegar até aquela região. Fomos surpreendidos à noite com muitos tiros, explosões e incêndio nos arredores. O acampamento podia ser invadido a qualquer momento.
Eu e mais quatro arqueólogos conseguimos pegar um dos jipes velhos do acampamento e fugimos para a única direção que nos era possível: o deserto.
Era uma terra seca, de muita poeira e a vegetação, rasteira, com pequenos arbustos de galhos desfolhados. Levamos o que conseguimos carregar nas mãos: nossas mochilas, alguns mantimentos e ferramentas de trabalho. Mal nos vestimos direito.
Viajamos durante o dia inteiro e não tínhamos ideia do que encontraríamos naquela região. Podíamos até nos localizar pela disposição do sol, bem como pelo mapa e pela bússola. Mas, nem sabíamos exatamente em que ponto do deserto estávamos. Poderíamos estar a alguns ou a muitos quilômetros de qualquer aldeia perdida daquele país. E mesmo que encontrássemos uma tribo, não sabíamos como eles reagiriam.
Com um dia de viagem, o carro não aguentou e quebrou. O combustível também já estava no fim. Nossa única opção era andar á pé. Sem comunicação, sem rumo certo, com os mantimentos se acabando, estava difícil ter esperanças. Mas, sabíamos que se ficássemos pela região do acampamento, talvez já estivéssemos mortos.
Eu era a arqueóloga chefe do grupo e me sentia com responsabilidades sobre a situação. Porém, estava muito preocupada porque, um dos nossos arqueólogos tinha um ferimento de certa gravidade no braço. Havia infecção e nos restava um pouco de creme para assepsia, que não parecia ajudar muito.
No final do segundo dia, com a água chegando ao final, percebemos que teríamos de procurar alimento e água. Juntamos todo o material que tínhamos e que pudemos carregar: uma bússola, uma pistola Liberator M 1942, um facão e uma pequena pá de escavação, além de uma caixa de fósforos que logo se acabaria. A bússola, pelo menos, não nos deixava andar em círculos.
Na noite do terceiro dia, fizemos a fogueira com nossos últimos fósforos. Teríamos que nos virar para fazer a próxima. Estava frio. De dia fazia muito calor com o sol forte e de noite a temperatura caía em demasiado. E nosso amigo ferido pareceu piorar, apresentando um pouco de febre.
Como contar com o improvável?
Uma suspeita que me acompanhava, também se confirmou naquela noite. Tive momentos em que achei estarmos sendo vigiados. Um dos nossos colegas viu um vulto nas sombras. Pela descrição parecia ser um humano. Tivemos dificuldades para dormir, embora tivéssemos uma arma sempre com alguém que ficava de vigia.
Mas, foi logo cedo da manhã que nosso visitante apareceu. Era um nativo, estava sozinho e vestia apenas um meio calção e uma pequena cobertura amarrada na cabeça, feitos de couro grosseiro. Tinha nas mãos uma pequena lança de ponta de pedra. Seus cabelos crespos eram compridos e apresentava uma barbicha. Nos olhava como se quisesse realmente chamar a atenção.
Fiz sinal para que ele se aproximasse. Reproduzi gestos de abraço, de boas vindas e ficamos todos atentos. O homem se aproximou com certo receio e balbuciou alguma coisa. Percebemos que ele queria mesmo era fazer contato conosco.
Sentados nas pedras, diante dos primeiros raios da manhã, começamos a nos comunicar. Ele falava palavras de uma língua da região dos nativos e algumas expressões eram possíveis de serem deduzidas. Tentamos explicar que estávamos perdidos e gostaríamos de ir para uma aldeia que nos recebesse.
O nativo demonstrou com gestos que estávamos muito longe e demoraríamos duas noites. O que era muito tempo para nossa sobrevivência. Pedimos ajuda e ele pareceu concordar em nos acompanhar em direção à aldeia. Não parecia pertencer à tribo indicada, disse apenas que vivia ali no deserto. Comentei com os colegas que era um alento e muita sorte temos encontrado aquele homem.
Mas, alguns dos mais céticos resmungaram, perguntando como um nativo com apenas um lança pré-histórica poderia cuidar da nossa sobrevivência, sem água e sem ter o que comer em um lugar em que não se via uma alma viva. Também fiquei apreensiva, pois parecia ser uma das criaturas mais atrasadas da face da terra.
Tínhamos conosco instrumentos que levaram milhares de anos para serem aperfeiçoados, conhecíamos inúmeras técnicas de sobrevivência em ambientes dos mais hostis, nosso conhecimento científico e nossa tecnologia do mundo moderno confirmavam que estávamos em pleno século XX, mas tudo ali parecia conspirar contra nós. Enfrentávamos uma caminhada difícil, com o objetivo mais desesperador para qualquer ser humano: sobreviver.
O ambiente estéril e não demonstrava a presença de qualquer animal que pudesse servir de caça; as temperaturas variavam entre dois extremos de calor e frio, e não tínhamos a menor ideia de onde encontrar água. Estávamos, de fato, nas mãos de uma figura pré-histórica que carregava consiga um único instrumento de madeira com o que parecia ser uma ponta de pedra de sílex amarrada com cipós.
O dia foi mesmo cheio de surpresas e, talvez, sozinhos, não tivéssemos passado por eles sem grandes sequelas. O nativo pediu para esperarmos e em pouco tempo, trouxe nas mãos um pequeno animal que ele caçou. Pude perceber que era um daqueles bichos que vivem soterrados em buracos e nosso amigo conseguiu acertá-lo com sua lança, antes que retornasse à toca.
Oferecemos nossos facões, mas ele rejeitou. Pegou a lança, desamarrou a ponta de sílex que estava presa por cipós, e com ela, delicadamente foi cortando a pele do animal. Ele separou a carne do couro, cortando por entre os ossos. Pendurou a carne em gravetos para secar um pouco e nesse meio tempo, limpou o couro, estendendo-o aberto. Era evidente que aproveitaria aquela parte para vestimentas ou algo assim.
Mas, já não tínhamos fósforos e não sabíamos se as pedras do lugar poderiam provocar faíscas. Para minha surpresa, o nativo pegou a ponta de látex do seu rudimentar instrumento e, batendo-a contra uma pedra bem escolhida sobre gravetos secos, conseguiu fazer o fogo – da forma mais primitiva como eu já vira na minha vida. Arrumou os galhos secos em maior quantidade, espetou a carne do animal caçado e preparou-a. Foi uma pequena e apetitosa refeição, não porque estava gostoso, mas porque estávamos terrivelmente famintos.
Perguntei a ele sobre água. Como poderíamos beber alguma coisa naquele deserto? O nativo nos conduziu até uma parte de arbustos rasteiros; cavou em torno do caule e arrancou um deles, deixando à mostra um bulbo. Com sua ferramenta de látex, fez um corte na lateral e espremeu-a na boca, demonstrando como beber o líquido que saía dela. Logo, cada um de nós estávamos nos servindo daqueles poucos bulbos que ficavam entre a raiz e o caule de certos arbustos.
Naquela noite, o nativo cortou pacientemente vários galhos secos dos arbustos e fez uma proteção contra o vento frio do deserto. E quando vimos que nosso companheiro ferido estava queimando-se em febre, com o ferimento bastante inflamado, fomos socorridos pelo nativo. Ele pediu, com gestos para tratá-lo. Colocou sua lâmina de látex no fogo que nos aquecia, e quando estava quente, fez uma cauterização da ferida. Tivemos que segurar o homem com força, pois ele gritava bastante de dor. Era nossa última esperança de salvá-lo.
Mais um dia e meio depois de estafante caminhada, estávamos quase à exaustão quando avistamos uma tribo. Nosso amigo nos conduziu até perto. Gritou para algumas pessoas que já tinham nos visto, como se nos entregasse a eles, cumprimentou-nos e retornou ao deserto. Não adiantou tentar agradecê-lo ou mesmo agradá-lo com alguma coisa. Não quis nada, apenas podíamos ver a satisfação em seu rosto por nos ter salvado da morte certa.
Os nativos da tribo nos acolheram, nos alimentaram e conseguiram carroças para nos levar a uma cidade. Demos a eles alguns dos nossos instrumentos, como presentes: facão, relógio, cinturão com fivela de metal e a pá. Pareceu ser o suficiente, pois ficaram contentes com os brindes.
A cidade ainda não tinha se envolvido na guerra civil do outro lado do deserto. Por isso, conseguimos ajuda das autoridades, depois de fazer contanto com nossa embaixada na capital.
Nossa reflexão coletiva
Quando estávamos reunidos em um dos aeroportos do trajeto para casa, pela primeira vez que pudemos confabular sobre a sorte do nosso destino. Um dos integrantes mais céticos do grupo e dos mais desesperados no deserto, pareceu nos fazer um resumo significativo:
— Conheci tribos em lugares distantes do mundo. Seus habitantes tinham vários instrumentos para sobreviverem no dia a dia, como facas, machadinhas, lanças, mochilas, cantis feitos de couro, escudos e até arco e flecha. Por isso, ao ver aquele homem que veio ao nosso encontro, achei que ele era o ser humano mais atrasado do planeta: tinha apenas um pequeno e frágil instrumento pré-histórico, uma lança com ponta de pedra. No entanto, foi tudo o que ele precisou para sobreviver e nos salvar de morrer no deserto.
Ao ouvir aquele relato, apenas complementei:
– Precisamos rever nosso conceito de inteligência humana, do que é uma cultura “atrasada”. Não é pelo progresso ou pela quantidade de instrumentos que as pessoas possuem, mas pelo que são capazes de realizar com o que têm. Mais que isso, ele colocou tudo o que tinha à nossa disposição. Além de um instrumento que, inteligentemente, valia por cinco, teve a coragem e a bondade de compartilhar conosco seu conhecimento de sobrevivência.
Minha formação de arqueóloga não havia me preparado para ser uma empreendedora e aquela experiência permitiu que eu passasse a aplicar na minha vida, como diretora de instituições em museus e institutos de arqueologia, uma forma mais acertada de administrar. Consegui os melhores resultados confiando nas pessoas mais simples e exigindo delas, apenas, o melhor das suas experiências, das suas intenções. E sempre que estava em alguma grande dificuldade, sabia que o que mais precisava, não era de recursos extras, mas de saber usar o que dispunha à minha volta ou dentro de mim mesma.