Postado em: 27 de junho, 2019.
Minha situação era de iminente risco de morte como prisioneiro de uma tribo que não gostava de brancos. Estava só entre selvagens e sem nada para barganhar por minha vida. Um grupo de caçadores tentou vender peles de animais aos índios Cree, nas montanhas do norte e foram mortos pelo novo chefe. Eu era parte do grupo e por não ter oferecido resistência, escapei de ser massacrado logo no confronto.
Não sabia falar nem entender a língua daquele povo selvagem e nem sei exatamente para que fui poupado. Talvez, por ser jovem quase adulto, quisessem-me como escravo de trabalho ou ainda, para me usar como moeda de troca junto ao meu povo branco.
Minhas chances de escapar ou fugir eram nulas. Estávamos no final do inverno, sob neve constante e separado por uma montanha quase intransponível para um homem sozinho naquela época do ano. Não havia a menor chance de que alguém da vila mais próxima viesse me salvar, estavam a quilômetros de distância e não sabiam sequer o local exato do acampamento daquela tribo.
Até quando eu conseguiria sobreviver? Se os índios não me matassem, aquela comida parca e horrorosa o faria em poucas semanas.
Foi a primeira vez que acompanhei meu tio, um velho e experiente caçador de peles que tinha um grupo de caça de cinco homens. Eles já haviam feito negócio com os índios Cree em várias outras ocasiões, mas não sabiam que o antigo chefe havia morrido e seu filho, que assumiu o lugar, não gostava nem um pouco dos homens brancos. Os índios não deram nenhuma chance de diálogo ou defesa, simplesmente mataram meu tio e seus caçadores, para ficarem com as peles sem ter que trocar nada por elas.
Como vim parar ali? Na vila não havia trabalho suficiente naquela época do ano, resolvi me aventurar na caça, aproveitando para conhecer os índios da região. Isso me tornaria um caçador adulto; quem sabe, um empreendedor de peles.
Embora não entendesse a linguagem dos Cree, compreendi que a linha que o chefe traçara no chão, a um passo da saída da tenda significava que eu não poderia passar dali. Talvez também não tenham me amarrado porque viram que, pelo meu corpo franzino e esquelético, eu não poderia oferecer ameaça a nenhum neles.
Dias se passaram e criei o hábito de sair todas as manhãs da tenda para sentar-me ao sol. Seus raios fracos pareciam me servir de alimento ao corpo e à alma.
Ninguém na tribo falava ou olhava para mim, parecia que eu era invisível. Até mesmo o índio que trazia a pequena tigela de comida todos os dias não tinha expressão alguma no rosto ou nas palavras. Davam mais atenção aos cavalos e aos poucos cachorros da tribo do que à minha pessoa.
Certo dia, uma índia passou na minha frente carregando um grande feixe de galhos secos e, de repente, uma das tiras de couro desatou, deixando cair a madeira. Num impulso tentei ajudar, mas ela me parou brandindo um pedaço de galho no ar em minha direção e gritando palavras de ameaça e desprezo. Recolhi-me e fiquei quieto.
Observei que ela tentava amarrar novamente o feixe de galhos com um nó mal feito. Com certeza a madeira cairia de novo. Então, impulsivamente mostrei-lhe uma tira de couro retirada da minha camisa, na qual fiz no vazio um nó apropriado. Ela fixou o olhar nos meus gestos como uma criança atraída por um brinquedo novo. Então tentou reproduzir o nó com certa dificuldade. Pacientemente repeti todos os movimentos que fizera, mostrando um passo a passo do entrelaçamento da tira. A índia conseguiu reproduzi-lo e, sem dizer nada, seguiu seu caminho com os galhos nas costas.
Para minha surpresa, no dia seguinte, logo cedo, aquela mulher voltou em companhia de uma índia mais nova. Aproximaram-se com olhar desconfiado e ela me mostrou a tira de couro, como que pedindo para que eu refizesse os gestos e as ensinassem a dar um nó. Repeti várias vezes até que elas aprendessem todos os movimentos.
Comecei a perceber que todas as tarefas daquelas pessoas exigiam as habilidades das mãos. Elas amarravam, prendiam, atavam e desatavam, costuravam, cortavam constantemente, mas de forma rudimentar, pois não tinham o conhecimento dos diferentes tipos de nós. Passei, então, a fazer pequenas atividades com tiras e fiapos de couro, dando nós e entrelaçando peças, algumas apenas como brincadeira. E isso foi um achado, porque outros índios, inclusive crianças, vieram para aprender os nós que eu sabia fazer. Era o que eles mais precisavam por ali: nós para prender os galhos, amarrar os cavalos, construir as tendas de pele com mais firmeza, segurar as roupas de peles.
Nunca imaginei que algo que me atraíra tanto na infância, agora servia de interação com uma tribo que não falava minha língua e até pouco tempo sequer queria falar comigo. Sempre fui curioso com os nós que via os vaqueiros, os caçadores e trabalhadores fazerem. Meu pai tinha muita paciência em me ensinar as voltas e os movimentos de cada um dos nós que eram usados para diferentes tarefas, dizendo-me que o segredo de um nó bem dado é fazê-lo de modo que nada consiga soltá-lo, mas que seja fácil de desatar por quem o deu.
Com o passar dos dias fui me comunicando por gestos com os índios Cree e conseguindo um pouco mais de comida, roupas para o frio. Se tivera a sorte de ter sobrevivido até ali, precisava aproveitar a oportunidade. E ela se completou quando fui levado até o chefe para demonstrar-lhes a sabedoria dos nós. Senti-me como um mágico dos circos de lona, fazendo peripécias com as mãos diante dos olhos admirados dos expectadores. O chefe ficou extasiado com o que minhas mãos eram capazes de fazer – embora fosse algo para a qual ninguém da vila tivesse dado valor.
A primavera chegou e para minha alegria, os meus nós estavam por todos os lugares na tribo. Até mesmo as lanças, os arcos e as flechas, os penachos da cabeça deles ganharam novas amarrações. Pensei na situação de pavor com que chegara ali, prisioneiro, maltratado, sem nenhuma esperança de fugir e muito menos de sobreviver. Estava diante de um povo selvagem, cuja língua não compreendia e que não tinha a menor vontade de se comunicar comigo. Tinha somente minha vida para ser sacrificada e antes achava que as dificuldades na vila é que eram terríveis.
Quando menos esperava, fui agraciado com a gratidão de uma tribo que considerava cruel e selvagem. O chefe mandou alguém me buscar certa manhã e sem muitas delongas, deu-me um cavalo, gesticulando a dizer que eu estava livre para partir. Algumas índias e índios me trouxeram agasalhos e um pouco de comida dentro de sacos de pele. Com os olhos cheio d’água e o coração explodindo do mais profundo alívio, parti em disparada para bem longe daquele lugar.
Caminhei por entre as trilhas íngremes da montanha, atravessei os rios de água gelada e dormi na floresta de pinheiros por noites, tentando seguir o caminho de volta por onde havia passado com meu tio e seu infeliz grupo. Até que, no quarto dia vi ao longe uns caçadores. Gesticulei e gritei como se fosse gente conhecida. Estava exausto, mas pude contar-lhes quem eu era e minha história. Eles quase não acreditavam no que ouviam. Levaram-me para a vila de onde eu nunca deveria ter saído.
Com o passar do tempo tornei-me um empreendedor. Aprendi que não é necessário ter alguma mercadoria ou possuir bens materiais para oferecer algo a quem precisa. Minha riqueza estava no meu conhecimento, nas coisas que aprendi a fazer durante a infância e a adolescência. Para empreender, tudo o que eu precisava era descobrir o que eu poderia oferecer para satisfazer a necessidade das pessoas; o que elas realmente precisavam saber ou fazer para realizarem suas tarefas.
Tornei-me um empreendedor de conhecimentos. Aprendia atividades manuais, descobria como melhorá-las e depois oferecia meus ensinamentos às pessoas, para que pagassem com o que pudessem. Hoje, o meu rancho ensina as artes das profissões a jovens vaqueiros, caçadores e tratadores de peles. Recebo gente de várias regiões e tenho vários empregados que me auxiliam a gerenciar meus recursos.
Aprendi, sim, que ninguém é tão pobre ou tão imprestável que não tenha nada a oferecer. Os índios selvagens, que seriam os meus algozes, tornaram-se os meus primeiros clientes. Eu descobri com eles que, onde há pessoas, existe a necessidade de empreender alguma coisa. E o conhecimento é uma matéria prima de imenso valor. Ele leva à valorização e à qualificação do ser humano em qualquer lugar do mundo.
Imagem: remix de ilustração retirada do blog:
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