Postado em: 13 de maio, 2019.
O maior desafio de um navegador e explorador, assim como qualquer empreendedor, é adentrar por terras desconhecidas. Não conseguir prever o que virá requer que se saiba lidar com a diferença entre os riscos e as incertezas. As páginas soltas de um diário de bordo do piloto de um navegador português permitiram recontar seus dilemas e sua aventura, perdido com a tripulação em algum lugar dos oceanos conhecidos, há três séculos.
O diário de bordo que tenho em mãos tem mais de 300 anos, está com suas páginas bastante carcomidas e muitos dos escritos, manchados demais ou apagados pelo tempo. Encontrei-o no depósito do museu onde estive para avaliar algumas peças antigas, do tempo das grandes navegações portuguesas. E nas minhas horas de folga tento recompor uma história de vida contada de próprio punho pelo piloto.
Chamou-me a atenção, pelo que pude recuperar dos fragmentos narrados, o fato de uma tripulação, de 16 homens, comandada por um jovem capitão ter conseguido chegar viva em uma terra desconhecida em algum lugar dos oceanos Atlântico ou Índico. Estava diante de uma instigante aventura cheia de perigos e desafios, mas, principalmente de enfrentamento do desconhecido.
Durante toda a história da civilização humana, e na contemporaneidade não tem sido diferente: incontáveis empreendedores deparam-se com riscos e incertezas. Os riscos podem ser previstos e são mensurados, mas as incertezas, como o próprio nome diz, não abrange sequer as probabilidades, são totalmente desconhecidas. Saber lidar com elas, talvez seja um dos grandes segredos de poucas pessoas de visão.
Jogados em um ambiente inóspito
O piloto da embarcação, de sobrenome Fernandes relata que, embora as caravelas daquela esquadra estivessem munidas dos mais avançados instrumentos de navegação da época, foram atingidas repentinamente por tempestades muito fortes e ondas violentas. Algumas afundaram e outras se desgarraram. O astrolábio, o quadrante, a bússola, e até a balestilha de marfim, uma novidade na época para medir com maior rigor e precisão a posição dos astros, não foram suficientes para evitar a tragédia e ajudar a retomar o caminho. O navio estava bastante avariado e suas velas triangulares, para navegar contra o vento, foram inteiramente danificadas. Ficaram à deriva por várias semanas, até que a tripulação avistou terra. Conseguiram aproximar-se da praia e os sobreviventes remaram em dois barcos até a areia.
O capitão estava muito assustado, pedia que os homens mantivessem suas armas de fogo em punho e todos olhavam nervosamente para todos os lados. Não havia muito o que decidir, por isso acamparam nas imediações. Alguns homens se preocupavam com a reposição de mantimentos e água potável, outros analisavam as possibilidades de consertar a caravela para tentarem voltar ao mar com segurança.
Os dias que se seguiram foram de tímidas explorações dos arredores. O capitão procurava conversar com os marinheiros sobre os perigos que poderia haver naquele lugar: animais ferozes ou peçonhentos, nativos hostis, frutos venenosos, água contaminada. Sobre isso havia especulações e opiniões de como se precaver. Porém, todos demonstravam um certo terror diante do desconhecido. Não havia nada escrito nas cartografias sobre aquelas paragens e quase nenhuma esperança de que outras embarcações pudessem aparecer, pelo menos tão cedo. O que poderia acontecer dali por diante? Sequer sabiam se poderiam encontrar material para tentar consertar o navio, pois a vegetação visível parecia inapropriada.
O diário de bordo do piloto Fernandes deixa a entender que o jovem Capitão era muito meticuloso, tentando planejar cada incursão que fazia, discutindo com os seus homens o que poderia ser feito caso enfrentassem certos de tipos de perigos. As armas precisavam estar prontas para o caso de animais ou nativos que por ventura surgissem inesperadamente e atacassem. Com o fim dos escassos mantimentos que trouxeram do navio, havia orientações para procurarem água e frutos ou mesmo animais de caça. Embora tudo isso fosse mera especulação, existia a possibilidade de não encontrarem recursos para sobrevivência. A chegada de cada noite escura, as lentas e desconfiadas incursões para um lado e outro da praia e para dentro da terra firme, era o que mais trazia medo a todos.
Apesar de serem homens corajosos, afeitos aos perigos do mar, estavam perdidos e assustados com as incertezas de um mundo totalmente desconhecido. E esse medo aumentou, segundo relato do diário de bordo, quando, em uma das investidas pelo matagal, um dos homens fora picado por uma cobra. Teve febre durante dois dias e morreu. Mas, novas surpresas estavam por vir. Em outra busca, o capitão e os homens que o seguiram encontraram pegadas de pés descalços: havia nativos naquele lugar. Cinzas e restos de animais comidos era uma evidência de que um grupo considerável de nativos havia passado ali por perto em dias anteriores à chegada da tripulação naquela praia.
O piloto, que parecia ser mais experiente que o capitão em viagens marítimas, relatou que teve uma conversa com ele. Disse-lhe que era preciso usar todos os recursos possíveis, aproveitar todas as ideias da tripulação, delegar tarefas e criar, dia após dia as condições necessárias de sobrevivência até poderem, quem sabe, sair dali. Juntos, mapearam todos os riscos e desafios, e como poderiam enfrentá-los. Os indícios e sinais de certos perigos, como as cobras venenosas e pegadas dos nativos do lugar permitiam lidar com esses riscos, especulando-se sobre o que fazer para enfrentá-los.
Em muitos empreendimentos, é possível voltar atrás, é possível seguir outros caminhos. Naquele caso, não. Podiam mensurar os riscos para poderem sobrevier a eles; porém, havia incertezas demais e isso era apavorante. Como conviver com um futuro tão incerto?
Essa parte inicial do relato terminou por aí, devido a falta de folhas que se arrancaram do diário de bordo. Fiquei angustiado por não saber os detalhes de como lidaram com aquela situação. Porém, consegui resgatar mais adiante o que provavelmente deve ter ocorrido. Os escritos de quase um ano depois dão conta de que os homens que sobraram foram encontrados por uma esquadra portuguesa que chegou por ali; o navio não existia mais e aqueles homens só sobreviveram porque fizeram amizade com os nativos, dando-lhes presentes e impressionando-os com seus instrumentos pessoais.
Segundo o piloto relatou, foi uma negociação muito arriscada porque os nativos, de início mostraram-se hostis, mas aos poucos foram aceitando os brindes deixados na floresta. Seis homens, inclusive ele e o capitão conseguiram sobreviver às incertezas sem nunca imaginar que seriam poupados. E isso nos diz muito sobre a inteligência humana e seu espírito empreendedor: é preciso confiar na capacidade de enfrentar adversidades e desafios, por mais que eles pareçam intransponíveis; e quando as incertezas são angustiantes, é conveniente viver um dia de cada vez.
Por mais que nos cerquemos de todos os aparatos necessários à nossa existência, sempre haverá o inesperado da vida, nos lembrando que não temos controle sobre tudo. Nossa capacidade de analisar os riscos e nos prepararmos para eles, são essenciais na superação das dificuldades, mas não há nenhuma garantia para as incertezas. Os empreendedores mais experientes e calejados sabem disso: os riscos são mensuráveis e passíveis de serem superados; incertezas, porém, exigem uma crença resignada em nossa capacidade humana de descobrir o que fazer, com o que somos e o que temos, para enfrentar o que quer que nos seja dado.