Postado em: 6 de maio, 2019.
Devia haver uma maneira de enfrentar Tristão e convencê-lo a mudar suas ideias arrogantes e prepotentes. Nosso Clã, eu acreditava, estava em perigo com a chefia daquele celta de origem duvidosa que conseguira se impor pela ganância e se tornar o novo senhor dos guerreiros.
Não havia um dia em que eu não acordasse tecendo argumentos para contrariá-lo. E o fato de ser uma mulher com opiniões próprias o irritava profundamente. Cada confronto meu, parecia instigá-lo a querer me punir com tarefas e missões ardilosas. Eu não ficava nem um pouco amedrontada porque essas missões de perigo serviam para colocar à prova minha coragem e resistência.
O que me deixava apreensiva é que os questionamentos feitos também por outros integrantes do Clã e que eram igualmente castigados com tarefas de perigo, como estar à frente de batalha, custava a vida de muitos deles.
Minha crença baseava-se no fato de que um chefe não pode usar sua arrogância e sua ganância, ao assumir a chefia do grupo de guerreiros do Clã, para fazer ataques aos inimigos sem um planejamento apropriado, sem ouvir seus integrantes e sem medir as consequências de algumas mortes que poderiam ser evitadas. Tristão, porém, nunca admitia que estava errado, só se importava com a sua vontade e o que parecia ser positivo nas suas investidas. Queria levar o Clã a uma nova era de glória e soberania naquelas paragens. Mas, a que preço? Eu não conseguia aceitar que expulsar outros povos que habitavam a região sem nenhuma ameaça aparente ao nosso Clã era correto. E lamentava cada morte em nosso corajoso grupo de guerreiros, principalmente de amigos de sangue.
Alguns guerreiros mais próximos a mim, constantemente diziam:
— Almira, não seja tão provocativa. Tristão reúne o grupo, dando a você as piores tarefas, justamente para mantê-la humilhada e exposta ao perigo.
Claro que isso também era uma preocupação. Ao definir tarefas especificamente perigosas, Tristão estava querendo nos subjugar e nos manter sob controle, sem levar em conta que éramos capazes de fazer coisas melhores.
Certo dia, ao receber uma missão de risco, procurei me distanciar para não demonstrar minha raiva, saindo para a floresta. Aos poucos fui me acalmando por entre aquelas ancestrais árvores que sempre me acolheram desde a infância. Havia crescido a brincar de guerreira com meus amigos, correndo e lutando nas folhagens secas.
Ao colocar a mão para me apoiar em um caule e cumprimentar a árvore, repentinamente puxei-a por impulso porque algo se mexeu entre meus dedos. Uma borboleta estava ali e não a percebi. Voou em torno de mim e pousou de novo na casca grossa. Não consegui ver onde pousara, sua camuflagem era perfeita e passava despercebida pelos predadores facilmente.
Foi nesse momento que tive uma visão clara do que a mãe natureza estava querendo me dizer. Amanhecia todos os dias pensando em como reagir a Tristão, como confrontá-lo e demonstrar a todos que suas ideias eram inconsequentes e arbitrárias. Mas, poderia ser diferente… poderia acordar e passar despercebida como a borboleta. Não tinha que confrontá-lo, mesmo porque a chefia só podia ser questionada se Tristão cometesse uma falta grave contra o Clã.
No decorrer dos dias seguintes procurei não me expor a fazer contestações, ficava no meu canto e apenas ouvia, recebendo minhas missões com resignação. Passei a aceitar renegadamente as decisões, mesmo que impróprias e, aos poucos, outros guerreiros passaram a confrontar Tristão, atraindo sua atenção e recebendo seus castigos. Para alguns homens era mais fácil encarar o chefe, eles gostavam de medir suas autoafirmações, achavam-se tão fortes quanto Tristão.
Até que, um dia, Tristão armou uma estratégia errada, subestimou o adversário e forçou um ataque sem o devido planejamento, sem a devida necessidade. Estava apenas exercendo a sua autoridade e alimentando a sua prepotência. A ação foi um desastre, os guerreiros tiveram que bater em retirada e nem sequer pudemos recolher nossos mortos. Ainda por cima, o próprio Tristão, que se julgava imbatível, foi ferido com certa gravidade. Seu braço direito fora trespassado por uma flecha envenenada.
O Clã voltou a um período de introspecção. Os meses que se seguiram serviram para tratar dos feridos e repensar a ação. Fomos nos apercebendo que o ferimento de Tristão era mais grave do que se imaginava, seu braço não se curava e ele ficou impossibilitado até mesmo de tarefas rotineiras, que necessitassem de agilidade e força.
A acomodação das ideias arrogantes e gananciosas do chefe deram lugar à reflexão sobre aquele período turbulento. O Clã chegou à conclusão de que, embora tivesse havido prosperidade e crescimento, o preço a pagar foi muito alto: perdas irreparáveis de guerreiros estimados, famílias que tiveram de se refazer, uma fartura que não parecia ser satisfatória para ninguém. Tristão foi destituído da chefia dos guerreiros e um novo chefe devia ser escolhido.
Para minha surpresa, muitos passaram a me indicar e a me apoiar. E percebi que minha atitude de passar despercebida foi vista como sensatez. Ao ser eleita para chefiar nossos guerreiros, ouvi o Conselho dizer publicamente que me escolhia porque meus confrontos à Tristão sempre foram pertinentes e quando enviada para frente de batalha lutava com habilidade de destreza, além disso, minha capacidade de controlar os ímpetos foram sinal de maturidade e sabedoria.
Ao conquistar o respeito e o apoio de todos, percebi quão grande minha responsabilidade de reestabelecer uma ordem de segurança e prosperidade que levassem em conta minha liderança, meu respeito às opiniões de todos e a unidade do Clã.
Anos depois, quando repassei a liderança do grupo de guerreiros para ser mãe e procriar filhos de uma nova geração de Celtas, sempre que enfrentava momentos difíceis, recolhia-me à floresta, longe da vida urbana, em busca do silêncio e das pequenas lições que a mãe natureza me dava – na verdade era sempre um retorno a mim mesma, a uma sabedoria feminina de percepção da vida.
Meu legado, compreendo perfeitamente nesse momento em que relato minhas memórias, foi perceber que não se é chefe para comandar, controlar e exibir poder. A liderança é o fluxo de uma ordem baseada no respeito às opiniões diferentes e na sensatez de saber o que é melhor para os outros e para o bem da coletividade.
Desenho da Mandala: Dora Alis