Postado em: 9 de março, 2021.
Como o pensamento estratégico pode ser aprendido na prática dos jogos de tabuleiro? Que habilidades de controle e aplicações de recursos são exercitadas nesses jogos? Os jogos de tabuleiro modernos, conhecidos como eurogames, espalharam-se pelo mundo inteiro nas últimas décadas e conseguem atender a essas questões, bem como, proporcionar percepções de empreendedorismo na escola, em casa, na universidade. Com base em Catan, o jogo pioneiro dos eurogames, enveredamos pelos fundamentos das práticas de mercado.
Os jogos de tabuleiro modernos ajudam na compreensão de que o pensamento estratégico vem antes do planejamento estratégico. Com os eurogames, desenvolvemos habilidades intelectuais e cognitivas inerentes ao pensamento estratégico, mas também os aplicamos em situações que simulam a realidade. Essas atividades podem ocorrer tanto em jogos competitivos, quanto em jogos cooperativos, com envolvimento de equipes. O jogo Catan tem peculiaridades competitivas que demonstram a dinâmica do comércio e da gestão de recursos.
Diante da grande quantidade de jogos de tabuleiro modernos que abrangem situações mercadológicas de épocas, lugares e empreendimentos os mais diversos, também selecionamos Catan pela sua versatilidade de mecânicas que simulam situações cotidianas. Lembramos que existe uma infinidade de outros jogos, mais simples ou mais complexos que este, como: Century, Alhambra, Istanbul, Five Tribes, 7Wonders, Marco Polo, La Granja, Viticulture etc., cujas representações, situações e jogabilidades complementam-se em preciosas lições de gestão de recursos e estratégias, sem deixar de lado seus aspectos essenciais de diversão e entretenimento.
Princípios de economia e pensamento estratégico
Devemos compreender que os jogos de tabuleiro modernos generalizam os princípios da economia pelo que esses têm de universal. Eles nos envolvem com suas narrativas e estruturas temáticas referentes a determinadas épocas e culturas, e estabelecem dinâmicas que permitem que tais processos econômicos sejam diversificados em inúmeras variantes através de cada nova partida realizada.
Se a economia, em seu conceito genérico é o conjunto de atividades desenvolvidas pelas pessoas visando a produção, distribuição e o consumo de bens e serviços necessários à sobrevivência e a qualidade de vida, a economia capitalista é a organização das atividades econômicas por meio do mercado, baseada na propriedade privada, na qual a grande maioria das transações é mediada pelo dinheiro. Quando não sabemos lidar com tais processos, estes nos transformam em mercadorias.
Nesse sentido, o pensamento estratégico é o processo de identificação de padrões no presente, que se projeta para o futuro no âmbito da economia e do empreendedorismo. Percebemos um panorama a partir do qual podemos antecipar nossas ações de forma criativa, através de objetivos e metas passíveis de serem realizadas. E isso implica posturas que trazem grandes influências em nossas vidas.
Por isso, vale a ressalva de que é um processo pessoal e intelectual que pode ser aplicado em inúmeras situações. A perspicácia dos jogos sempre foi utilizada nas guerras, ganhou a dimensão dos negócios e é muito eficaz quando adotamos em nossa formação pessoal e profissional, mediante os desafios e percepção das oportunidades.
Utilização do jogo de tabuleiro Catan como exemplo
Catan foi o jogo pioneiro dos eurogames, criado em 1995 por Klaus Teuber, na Alemanha, a proporcionar mecânicas simples e inteligentes que nortearam os milhares de eurogames lançados depois dele. Traduzido para inúmeros idiomas, já vendeu milhões de cópias, cujos fundamentos divertem e ensinam os jogadores das mais diversas nacionalidades.
A ideia original do jogo Catan é por si só uma experiência primitiva do espírito empreendedor e dos princípios da economia na civilização humana: 3 ou 4 colonizadores estão habitando uma ilha que foi mapeada para estabelecer propriedades, estradas, vilas e cidades. O desenvolvimento desse ambiente se dá a partir de recursos básicos que precisam ser comercializados, ora entre os proprietários e o lugar, ora entre os próprios empreendedores, baseados na antiga lei da procura e da oferta, proveniente das práticas de escambo.
A ilha de Catan é composta por cinco tipos de terrenos: floresta, colina, pasto, lavoura, montanha e deserto; e cada colono inicia sua empreitada com duas aldeias e duas estradas apenas. Para progredir no decorrer do jogo e conseguir pontuação, os colonos precisam desenvolver suas propriedades a partir da aquisição de matéria-prima tais como: madeira, tijolo, trigo, minério, ovelhas, além de obter outras cartas de desenvolvimento, que podem ser conquistadas nas jogadas sucessivas e na comercialização com os demais colonos.
Existem duas dinâmicas principais no jogo que consistem em: colecionar as cartas com os recursos básicos; e desenvolver benfeitorias. Essas ações visam a aquisição de pontos por parte dos jogadores. Aquele que primeiro alcançar 10 pontos será o vencedor da partida.
Para obter os pontos é necessário construir estradas, casas e assentamentos ao formar a coleção de cartas de recursos, contendo ovelhas, tijolos, trigo e madeira. Somente de posse desses recursos é que o jogador colono pode realizar seus benefícios ou consegui-los na troca com os demais ou ainda com o próprio tabuleiro. Nesse sentido, outros aspectos se apresentam como variantes importantes ao empreendimento: a ilha é cercada por portos que funcionam como postos de troca de recursos. Trocar 4, 3 ou 2 lotes de madeira por apenas 1 lote de ovelha ou de trigo pode ser altamente vantajoso no decorrer de uma partida, por mais que pareça desproporcional a princípio.
No desenrolar de uma partida, o jogador acumula um certo conjunto de recursos, conforme seu objetivo de construir estradas, casas ou cidades. Mas, ninguém pode ter mais de 7 desses recursos nas mãos de uma rodada para outra, sob pena de ter que descartar o excesso. E isso estimula a constante construção ou comercialização, uma vez que acumular recursos demais resulta em perdas. Por sua vez, se o colono conseguir construir um porto, tem a oportunidade de somar recursos mais rapidamente, com trocas oportunas, ao pagar com o que tem em excesso, produtos que estão escassos.
Um agravante nesse processo de colonização ocorre quando um jogador consegue, no lance dos dois dados, obter o número 7. Isso lhe dá o poder de mover malfeitores do centro do tabuleiro para uma região produtiva de outros colonos, estagnando a produção até que um dos prejudicados consiga outro 7 nos dados (ou obter uma carta de valeiro), fazendo novo movimento desses malfeitores.
Em uma visão geral, um jogador participa intensamente de um processo de comercialização e construção que exige poder de competitividade para conseguir melhores recursos e pontuar mais, e ao mesmo tempo, requer que se saiba quando é vantagem cooperar ou fazer trocas de recursos na medida oportuna. Saber o valor das matérias primas em diferentes momentos e conseguir tomar as decisões acertadas é uma habilidade que se exercita constantemente. No final, quem conseguiu empreender melhor, driblando os infortúnios e as investidas dos malfeitores, ao mesmo tempo fazendo as melhores negociações e construindo da maneira certa será o mais bem sucedido colono de Catan.
Lições de gestão e empreendedorismo no contexto do jogo
Percebemos como o jogo reproduz a essência do pensamento estratégico, uma vez que numa partida definimos aonde queremos chegar no constante processo de definição e flexibilidade de metas. Avaliamos o ponto em que nos encontramos e todas as dificuldades que nos separam dos objetivos. Podemos traçar caminhos dentro das probabilidades dos acontecimentos, adotando um plano A, mas vislumbrando um plano B ou C… Avaliamos nossas escolhas e procedimentos, adotamos táticas de ação imediata e avançamos a cada jogada.
Assim como em um mercado real, todos os jogadores mantêm consigo, maior ou menor quantidade de recursos, diferentes valores em moedas, contando com o direito de fazer trocas, aquisições e pagamentos de especiarias. Como as ações se dão no desenrolar de cada rodada, tal qual ocorre nas negociações e movimentações comerciais da vida real, mesmo no final do jogo um empreendedor que está em vantagem de pontos de vitória pode se estagnar dentro de determinadas situações, permitindo que um outro de pontuação menor possa ultrapassá-lo. Tudo depende das decisões e escolhas de cada um.
Sempre ocorrem os lances de sorte, com as oportunidades criadas por cartas novas que são disponibilizadas após as operações comerciais. Tais situações casuais conseguem atrasar ou adiantar um planejamento prévio de um mercador, mas raramente consegue definir uma vitória ou derrota de alguém. As estratégias costumam beneficiar quem as utilizam apropriadamente. Na medida que o jogador vivencia esse e outros jogos de comercialização, aprende a reduzir os riscos e a depender menos da sorte e do acaso, pois mesmo não sabendo o que virá pela frente no jogo de troca das cartas, por exemplo, prepara-se para o inesperado no jogo das probabilidades, uma vez que é possível projetá-las
Percebemos, por fim, que todas essas façanhas e performances consolidam, na prática, o que costumamos adquirir de forma teórica sobre princípios de economia e empreendedorismo. Em eurogames como Catan, vivenciamos a experiência das expectativas e tensões próprias das negociações. Somos capazes de ousar ações arriscadas e tememos pelo fracasso delas. Mas, aos poucos, a intuição, a confiança e a capacidade de planejamento, próprias desse contexto, vão sendo fortalecidas. E mesmo quando uma estratégia dá errado, somos gratificados pelo rico aprendizado que isso proporciona. (Marcos Nicolau)