Postado em: 11 de fevereiro, 2020.
Partida fria é um filme que relata o conflito dos mísseis em Cuba, na Guerra Fria, tendo como eixo condutor uma competição de xadrez entre um americano e um soviético. Até aí, parece natural essa analogia do jogo com a vida, porém, uma observação mais atenta revela uma metáfora muito mais significativa, em que um simples peão pode vencer o jogo… se quiser.
O ano em que ocorre a história, 1962 pertence a uma época de iminente perigo de um confronto nuclear que aterrorizava o mundo. Mas, também um período em que o xadrez já se consolidara com prestígio de competição mundial. Era a representação de uma inteligência lógica e racional das mais exaltadas pelas grandes nações do planeta e que nas décadas seguintes tiveram grande repercussão.
As lições do jogo e dos jogadores no decorrer do filme são oportunas porque, entre traições, torturas a assassinatos, a ética e o respeito entre ambos se mantêm acima dos interesses políticos e militares escusos. E o filme vale justamente pelo que o confronto no xadrez poderia ter sido e não precisou ser, com um final hollywoodiano costumeiramente “espetaculoso”.
O bem urdido enredo de Partida fria coloca um professor americano alcoólatra, Joshua Mansky (interpretado por Bill Pulman), que outrora fora um gênio precoce, de volta ao cenário de uma competição mundial de xadrez contra um adversário que ele já havia derrotado há três décadas, o soviético Gavrylov. O professor substitui de última hora o enxadrista principal dos EUA, morto em condições misteriosas. Mas, ele logo percebe que é apenas um peão manipulado por poderosos bispos, torres, cavalos, reis e, pelo menos, uma dama. O americano descobre aos poucos que o mais difícil mesmo será sair vivo do jogo.
Não é possível deixar de comentar o sincronismo ou coincidência ocorrida entre a trama do filme a as filmagens na vida real: do mesmo modo que o mestre enxadrista americano fica invalidado de última hora de representar o país, sendo substituído pelo professor Mansky, o ator principal que faria esse papel, William Hurt quebrou o pé logo no começo das filmagens e foi substituído por Bill Pulman como protagonista.
Os lances das partidas são tão rápidos e frenéticos entre os dois jogadores, quanto os lances de tensão e riscos entre inteligência e contrainteligência dos agentes e espiões soviéticos e americanos, assim como era tensa também a movimentação militar entre União Soviética e Estados Unidos na região marítima de Cuba. O outro tabuleiro que aparece no filme é o mapa do oceano Atlântico com as miniaturas de navios de ambas as potências nucleares. O torneio mundial de xadrez ocorre em um país controlado pelos soviéticos, a capital Varsóvia, da Polônia, embora seja possível encontra simpatizantes dos americanos.
Não chegamos a ver por inteiro as jogadas dos enxadristas, tomando conhecimento delas parcialmente nos movimentos das peças com as mãos dos jogadores e no painel do auditório. Mas, sabemos como o jogo se desenrola em cada partida pelas expressões, gestos e posturas dos jogadores. Mais do que ver cada lance, vivenciamos o clima de confronto no semblante de ambos os desafiantes.
Até mesmo algumas expressões referentes a lances tradicionais do xadrez fazem parte do repertório de espionagem e codificação das situações de perigo iminente, com a palavra soviética para “roque”. É como se os personagens envolvidos fossem parte de uma grande xadrez, no qual vantagens e desvantagens vão sendo articuladas, incluindo-se a eliminação de peças valiosas.
O filme, escrito e dirigido por Lukasz Kosmicki, mostra o espantoso poder da mente humana que se baseia em um cérebro capaz de jogar uma partida inteira, mesmo que seu proprietário, no caso o enxadrista americano, esteja completamente embriagado e não se lembre de nada do que fez. Sua capacidade de perceber padrões, tanto de jogo quanto da trama política fica preservada e se manifesta naturalmente.
Não por acaso, o xadrez originou-se para simular disputas entre reinos, provavelmente na Ásia, ganhando existência competitiva na Índia há mais de um milênio. Sua representação de reis, bispos, peões e cortes permitiu, inclusive, que servisse de uso e análise, por parte de religiosos, da sociedade europeia desde a Idade Média. Serviu de inspiração e estudo de programação para computadores, dos mais simples aos mais poderosos, como no confronto, em 1996, da máquina Deep Blue com o enxadrista russo Kasparov, então campeão mundial.
Porém, no caso do filme Partida fria, um confronto de xadrez traz à tona, a partir de um conflito militar dos mais graves há pouco mais de meio século, uma reflexão sobre a possibilidade de uma tragédia bélica nuclear, cujo fantasma ainda está no ar. Seria o fim do jogo para milhares ou milhões de pessoas.
A disputa de xadrez entre dois grandes mestres dá a sua preciosa lição sobre o que é mais importante do que vencer o jogo. E não importa se você é um simples peão, sua relevância, mesmo não sendo percebida pela plateia maior, está em poder decidir a partida com suas inesperadas ações. Porém, vale lamentar que, apesar de significativo e essencial o confronto de xadrez com a analogia da trama dos personagens, o trailer oficial do filme não mostra uma cena ou sequer menciona algo sobre as partidas entre os dois enxadristas.
Um bom jogo é sempre esse substrato intrínseco da cultura humana, cujo rigor da lógica pode ser surpreendentemente quebrado para revelar a genialidade criativa do jogador. Assistir ao filme com o olhar de quem participa de uma partida desafiadora da nossa história é perceber que, no jogo como na vida a nossa posição no mundo se constrói por decisões, as quais, desavisada ou sabiamente, tomamos: um lance qualquer poder mudar o rumo da nossa existência. (Marcos Nicolau)
Partida fria (The coldest game, 2019) já pode ser encontrada no Netflix.
Imagens: sites de divulgação