Postado em: 17 de janeiro, 2021.
O que pode nos ensinar um filme sobre uma criança de 7 anos, prodígio no jogo de xadrez? Muito! Principalmente se a história for baseada em eventos reais. Embora uma criança superdotada possa ter habilidades superiores a muitos dos adultos, ela mantém uma inocente sensibilidade para o mundo que, se não for bem cuidada por pais e professores pode vir a sofrer estragos psicológicos.
O filme, Lances inocentes, de 1993, narra a história do menino Josh Waitzkn, fã do esquisito campeão mundial de xadrez, o norte-americano Bobby Fischer. A trajetória de Josh, que se desperta para o jogo vendo adultos jogando xadrez em desordenados embates de apostas numa praça do seu bairro, segue sendo contada até ser campeão da sua idade, em uma primorosa lição de como se lidar com crianças superdotadas.
Como toda produção hollywoodiana, o filme tem seus clichês (porque a vida também é cheia deles), porém, como se trata de uma história real, não dá margens para criação de personagens de comportamentos exagerados ou eventos mirabolantes, como costuma acontecer nas ficções. O resultado é que deparamos com personagens reais, com suas imperfeições e méritos, e que se comportam conforme os fatos vão sendo desencadeados, sem maniqueísmos ou atos prosaicos em demasia.
A sensibilidade de Josh é evidenciada na medida em que sua maestria no xadrez se revela. E vai de encontro ao que os adultos querem para ele. Seus pais não sabiam nada sobre o jogo de xadrez, e diante do desejo do pai de que ele se torne um campeão está a sensibilidade da mãe para que o filho não sofra as provações dos seus professores. Estes, por sua vez, com métodos antagônicos a cobrar posturas racionais de garoto que insiste em não ver o outro jogador à sua frente como um “adversário” que deve ser aniquilado.
Embora existam pesquisas desde os anos de 1970 em países como Estados Unidos e Inglaterra, não se chegou a um consenso sobre a superdotação. Muitas crianças demonstram um talento especial na primeira fase da infância e enquanto crescem, perdem esse diferencial, alcançando a “normalidade” dos demais. Outras pessoas revelam sua excepcionalidade na passagem da adolescência para a vida adulta e utilizam suas habilidades para se tornarem profissionais de sucesso. Uma dedicação de pais e professores em excesso não é garantia de que o superdotado o será quando crescer, assim como não há como transformar uma pessoa em excepcional por conta de uma educação diferenciada ou projetando expectativas para ela. Nesses casos, todo exagero apresenta um preço a ser pago… uma conta que pode chegar tarde demais.
O certo é que uma criança superdotada tem uma maneira diferente de ver o mundo, dominando sua percepção de padrões, quer seja em matemática, em música, no xadrez e em alguns esportes. Nesse caso, pais e professores devem, ao invés de focar no desenvolvimento das habilidades para alcançar resultados cada vez melhores, procurar compreender o ser humano que sustenta aquela habilidade, com suas sensibilidades e necessidades, dando-lhes condições, para que ela mesma possa compreender melhor suas diferenças e administrar seu crescimento pelo equilíbrio emocional. Poder tornar-se feliz com o que ela é e com o que é capaz de realizar é um caminho para a saúde mental dela quando se tornar adulta.
Retornando ao filme e sem querer apresentar spoilers demais, é interessante conhecer, paralelamente em fotos, um pouco da vida do enxadrista norte-americano Bobby Fischer, que foi capaz de derrotar os campeões de xadrez russos em plena Guerra Fria. Suas esquisitices o faziam sumir depois de ganhar um campeonato e não participar de outros, para retornar em campeonatos maiores. Em meio ao clima de expectativa americana sobre o possível aparecimento de um novo Bob Fischer, como era chamado – não por acaso o título original do filme é: Searching for Bobby Fischer -, percebemos que a vida do menino Josh vai se desenhando por entre os conflitos causados pelos próprios adultos. Por exemplo, o menino adora jogar na praça, onde adultos fumantes apostam suas partidas e jogam de forma ousada e até mesmo indisciplinada, mas seu professor tradicional, contratado pelo pai, o proíbe de participar desses eventos de rua. E somente uma mãe sensível é capaz de perceber o que o filho realmente deseja.
Lances inocentes é mais um filme a mostrar como o jogo de xadrez tem sido protagonista na vida de muitas crianças e adultos ao longo da história. Sua temática nos remete a outros filmes igualmente brilhantes em revelar a trajetória de outras crianças prodígios. Em A rainha de Katwe, conhecemos Phiona Mutesi, uma menina paupérrima de um bairro miserável de Uganda, na África que, descoberta por um professor de xadrez, depois de muitos conflitos, consegue se tornar campeã africana aos 14 anos; no filme A chance de Fahim, vemos o garoto Fahim Mohammad fugir de Dhaka, em Bangladesh com seu pai para se refugiar em um subúrbio de Paris. Depois de serem pegos pelas autoridades de imigração, que ameaçam deportá-los de volta a tragédia de suas vidas anteriores, o professor de Fahim faz uma proposta a ambas as partes: se Fahim ganhar o campeonato parisiense de xadrez, fica no pais.
Mas, no caso de Lances inocentes, a melhor lição é para pais e professores: quer nossas crianças apresentem um talento excepcional ou não, devemos aprender a nos dedicarmos, não às expectativas do que queremos para eles no futuro, e sim às suas formações pessoais com a compreensão e o respeito às diferenças, ajudando-os a descobrirem suas paixões e necessidades, para que sejam bem sucedidos e felizes com suas escolhas. Bom filme!
Resenhas mencionadas disponíveis em:
A rainha de Katwe
A chance de Fahim