Postado em: 16 de maio, 2019.
O que um jogo oriental de mais de 4 mil anos pode ensinar à nossa cultura ocidental contemporânea? Além de servir de instrumento mental para raciocínio, matemática ou mesmo inteligência espacial, o Go nos mostra lições muito mais significativas na formação pessoal e educacional das atuais gerações.
A sua simplicidade está na utilização de pedrinhas pretas e brancas, colocadas em qualquer das 361 interseções do traçado simples de um tabuleiro, de 19 x 19 linhas horizontais e verticais. Porém, essa estrutura elementar dá início a um jogo mais complexo do que o xadrez. E suas possibilidades e analogias estão profundamente arraigadas na essência da cultura humana.
A pureza representativa do Yin e Yang demonstram que esse jogo de mais de 4 mil anos foi criado numa época anterior às hierarquias sociais da China feudal e as lendas que envolvem sua origem demonstram aspectos dos mais oportunos nas concepções de educação e vida em sociedades atuais.
As estruturas universais de um jogo simples
O Go é constituído por um tabuleiro quadriculado e dois conjuntos de peças, pretas e brancas. Elas representam a pureza original do Yin e do Yang, na filosofia do Tao e base da cultura chinesa. O tabuleiro pode ser visto como o universo e as peças de cores opostas, como a relação de forças entre o bem e o mal, o grande e o pequeno, o feminino e o masculino, a noite e o dia, e todas as dualidades existentes no mundo. Para iniciantes, podem ser usados tabuleiros com estruturas de 9 X 9 ou 13 x 13 linhas horizontais e verticais. Mas, o tradicional de 19 x 19 amplia as possibilidades de busca pela supremacia territorial entre pedrinhas pretas e brancas. São 361 peças, sendo 181 pretas e 180 brancas – as primeiras têm uma a mais porque sempre começam o jogo.
Para nós, ocidentais, parece, de fato, um mero jogo de embate pela conquista de maior espaço territorial, com a captura e retirada de peças adversárias, que serve para medir capacidades intelectivas de perde e ganha, como é vista a maioria dos jogos de tabuleiro. Mas, ao considerarmos que há uma luta por manter o maior espaço vazio possível entre nossas próprias peças, sem sermos capturados pelo cerceamento de nossa liberdade de se movimentar e se expandir, percebemos um outro lado dessa relação entre o cheio e o vazio – isso fundamenta posturas diante da vida, estratégias de crescimento e conquistas de espaço de ação.
As lendas de origem e sua atualidade em nossas vidas
Existem muitas lendas para as origens do milenar Go e diferentes representações da sua importância foram geradas no decorrer das eras. Na época de Confúcio o jogo era considerado puro divertimento e até perda de tempo para pessoas desocupadas, confundido com os jogos de azar da época. Em dinastias posteriores foi descoberto como um poderoso modelo de estratégias militares e conquista de poder. Mas, em tempos posteriores foi considerado como a Arte da harmonia, espalhando-se para o Japão e a Coréia. Em décadas recentes, tornou-se um jogo de profunda complexidade até para os melhores computadores, superando em grau de dificuldades de programação, o Xadrez.
Pelo menos três conhecidas lendas demonstram no Go uma relação atual das dimensões representativas desse jogo para nossas percepções mentais e culturais.
A primeira lenda nos remete à importância do jogo para desenvolvimento de habilidades cognitivas de concentração na aprendizagem. O jogo teria sido criado como um instrumento de educação para um menino que era bastante disperso na sua formação. No período de 2337 a 2258 a. C., o Imperador Yao recebia relatos diários de que seu filho, Danzhu, não se concentrava no aprendizado escolar e se dispersava com coisas triviais. Ao criar o Go e ensinar ao seu filho, o Imperador conseguiu que ele assumisse uma melhor dedicação aos estudos e se tornasse um excelente aprendiz. Além disso, o Go ensina posturas de silenciosa observação dos movimentos, respeito ao adversário e compreensão de que as derrotas dão as melhores lições de superação e crescimento pessoal.
A segunda lenda fala de um mestre que ensinou dois estudantes a jogarem Go. Ele observou que, enquanto um dos aprendizes estava sempre interessado nas lições e nas estratégias do jogo, o outro jogava, mas ficava pensando longe, em como poderia caçar os gansos com seu arco. O primeiro tornou-se um vencedor com o tempo. Nesse caso, percebemos o quanto é importante a atitude de concentração e o ato de atenção para estudantes de qualquer idade. Estar concentrado é não se perder em devaneios que levam o pensamento para longe; estar atento é acompanhar cada passo da atividade, ação por ação, para dominá-las.
A terceira lenda escolhida diz respeito a uma habilidade mental conhecida como imersão própria para o fluxo temporal de aprendizagem. Certo dia, um menino chamado Wang Zhi, da Dinastia Jin estava cortando madeira na montanha. De repente ele viu dois homens jogando Go, mas não sabia que eram seres ancestrais imortais. Ficou tão concentrado, observando a partida, que esqueceu do tempo, e quando se voltou à sua atividade viu que seu machado estava enferrujado e sem cabo. Ficara ali por muito tempo, sem perceber, e quando voltou para casa descobriu que havia se passado muitos anos desde que ele saíra para cortar lenha. Seus parentes já não mais existiam e as pessoas falavam apenas de um menino que fora para a montanha e se perdera, sem nunca mais ser encontrado. Em muitos lugares da China, o jogo Go tem o nome do menino: Lanke. E, de fato, muitos psicólogos sabem que as pessoas entram em fluxo quando estão produzindo ou aprendendo algo de seu interesse e paixão, criando um ambiente de profunda aprendizagem.
Uma prova de sua complexidade
A percepção de que o Go é um jogo excepcional para a mente humana não é reconhecida apenas por sua milenar trajetória no Oriente. Podemos verificar isso a partir das tentativas de mapeamento de sua estrutura por poderosos programas computacionais nas últimas décadas.
Para se ter uma ideia da complexidade do Go frente ao Xadrez, sabemos que, da famosa vitória do computador Deep Blue sobre o mestre mundial de Xadrez, Gary Kasparov, em 1997, à conquista desse feito contra o mestre Go, Lee Sedol, pelo computador AlphaGo, em 2016, decorreram-se 19 anos. Os esforços de mapeamento e desenvolvimento do programa AlphaGo apresentaram um grau bem mais difícil, dada a grande quantidade de possibilidades estratégias do jogo. Estas façanhas da computação estão registradas em reportagens e documentários fáceis de serem encontrados na internet.
Mesmo assim, a vitória das máquinas sobre o cérebro humano ocorreu no âmbito de processamento de jogadas em uma estrutura pré-determinada, como os jogos de tabuleiro. Aprender a jogar e enfrentar adversários humanos significa muito mais do que processar jogadas e calcular ações de defesa ou ataque em um território ocupado por peças com determinados movimentos.
Jogar Go, assim como Xadrez, requer o uso de uma consciência intrinsecamente humana, que envolve emoções e sentimentos. Ambos os jogadores estão aprendendo a por à prova suas inteligências, habilidades de usar analogias, controles emocionais e construção de virtudes pessoais, cujos valores os guiarão para a vida inteira e para a educação de seus filhos e netos.
Por fim, os mestres chineses conseguem resumir bem o que estamos tratando aqui, em seus ensinamentos essenciais aos aprendizes: perca as suas primeiras cinquenta partidas de Go assim que possível, e leve adiante o que aprendeu; mantenha-se tranquilo, mesmo quando está em desvantagem e continue firme na concentração, porque o adversário pode se distrair por uns segundos o suficiente para você equilibrar ou virar o jogo; sempre que perder, principalmente de alguém mais experiente, agradeça o aprendizado; e não tenha medo de jogar contra jogadores melhores que você, aproveitando para conhecer os movimentos mais eficientes para a vitória.